quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Botticelli – Uma Deusa Vestida

O primeiro contato que tive com Botticelli, ao vivo e a cores, mas sem grandes impactos, foi no Museu do Louvre em 1968. Entretanto, iriam se passar mais de vinte anos para que eu pudesse  me impregnar com duas de suas obras. Foi na Galleria degli Uffizi, Florença, em 1991, onde estão expostas A Primavera (restaurado em 1978) e o Nascimento de Vênus (restaurado em 1987)

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A Primavera, de 1481 (a partir da esquerda: Mercúrio, as Três Graças, Vênus (?) e Cupido, Flora, Clóris e Zéfiro), festeja a chegada da estação. Para a quase unanimidade dos historiadores de arte a composição representaria o império de Vênus no qual penetram o amor, a alegria, a fertilidade e a estação com a sua profusão de flores. Seria a deusa a protagonista presente?

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Desconhece-se quem primeiro identificou perto de quarenta clip_image006espécies vegetais (!), incluindo alguns frutos e várias flores.  No meio do bosque das laranjeiras surge a personagem que questionamos ser Vênus. Por cima dela o seu filho Cupido, com os olhos vendados, atira sua flecha de amor em uma das Graças. Cupido vai além do quadro ao ilustrar que o “amor é cego”. 

 clip_image008O artista coloca, com extrema sutileza, a cabeça de Vênus no centro de um “vitral” circular dominado pelo azul do céu, ao fundo, e ramos de folhagem (à direita). O círculo é induzido por dois arcos de circunferência, um de cada lado da deusa, formado por dois troncos curvos de árvores. Essa “auréola” empresta à deusa um ar de “Madonna”, aparência que é ainda reforçada pelo véu em sua cabeça inclinada, pelos cabelos cobertos, pela veste recatada e gesto litúrgico da mão direita. É flagrante a diferença com a deusa do Amor nua e de cabelos esvoaçantes do Nascimento de Venus

Na extremidade direita do quadro surge a divindade de Zéfiro, deus do vento do ocidente, brisa amena que banha o bosque de orvalho e cobre a terra com o perfume de inúmeras flores. A poesia lírica romana de Ovídio teria servido de inspiração a Botticelli. O deus é figurado no momento do rapto de Clóris (à esquerda). Zéfiro está representado sob a forma de um ser azul esverdeado tentando agarrar uma ninfa de vestes transparentes (Clóris) e que olha para o deus com espanto. Da sua boca caem flores (“quando fala, seus lábios expelem flores(Ovídio)) que se misturam com as que decoram o vestido de outra figura ao lado dela – Flora. Flora dá um passo à frente e tira do regaço as rosas que deita no jardim. Como deusa das flores, com esse gesto, ela simboliza a imagem do título do quadro: início da Primavera. Ovídio poematiza o princípio da estação como o momento da metamorfose quando Zéfiro transforma a ninfa Clóris em Flora, a deusa das flores “Eu hoje sou Flora, aquela que era chamada de Clóris”.

As Três Graças, servas de Vênus, estariam configurando três aspectos do amor: beleza, desejo e felicidade? Seriam elas, Tália, a que traz flores, Aglaia, brilho e esplendor e Eufrosina, júbilo e alegria. Com vestes transparentes, bailam alegres e de mãos dadas. Em outra mitologia, as Graças representam os espíritos da terra fértil em seu ciclo de dar, receber e devolver seus produtos. (Uma origem simbólica do que os ecologistas chamam de “sustentabilidadade”?). Ao lado elas está Mercúrio, o mensageiro dos deuses, que fecha o quadro à esquerda. Ele é reconhecido pelas suas sandálias aladas; o caduceu na mão direita espanta as nuvens do céu; o sabre demonstra a sua função de guardião do bosque. Mercúrio, filho de Maia, já foi venerado como o deus de Maio, mês das flores, em antigo calendário agrícola romano.

A ênfase dada à figura majestosa da deusa Flora realça as rosas jogadas no chão. e seu “passo à frente” – a entrada na/da primavera!

São raras outras alegorias com tal poder de síntese. Uma escrita pictórica que desprende uma metáfora surpreendente. Não encontrei nenhum autor que tenha dado tal destaque.  Que melhor enredo para uma escola de samba?!

Com exceção da dupla Zéfiro-Clóris, Botticelli pinta “blocos de significação” (Mercúrio, as Graças, etc.) em espaços vizinhos que pouco, ou nada, conversam entre si. Clóris e Flora são figuras mitológicas diacrônicas. No entanto, esses elementos atuam em harmonia, como frases e parágrafos que, juntos, vão contar uma história e dar sentido à obra. Como tantas outras obras clássicas, um cenário onde a ação transcorre como numa montagem teatral.

clip_image012Contudo, uma contradição permanece. Temos aqui uma Madona cercada por mitos romanos e gregos, ou uma Vênus vestida e pudica? Sua fisionomia de castidade é uma reminiscência da Virgem Maria, e não da deusa do amor sensual. A presença de Cupido não implica a presença de Vênus. A maçã – fruto de Vênus, é transformada em laranja, que era um símbolo da saúde, e não do amor. Botticelli pinta três metamorfoses: Maçãs em laranjas, Clóris em Flora e Vênus na Nossa Senhora.

Não parece haver muita dúvida sobre a intenção do pintor de representar a transfiguração de um sincretismo religioso. Como também não há dúvida de que Botticelli fora largamente influenciado pela obra do filósofo florentino Marsilio Ticino. Nessa obra, "Ficino tentava fundir as concepções pagãs e a teologia medieval numa doutrina. Por oposição a uma Vênus inferior, terrena, sua Vênus Celeste simbolizava a humanidade, a compaixão, o amor, e sua beleza abria as portas do céu aos mortais" (Rose Marie & Rainer Hagen, 1997).

Em sua outra grande obra, o Nascimento de Venus, Botticelli faz o inverso ao despir a Virgem Maria (ver neste Blog Botticelli - A Virgem Maria Despida).

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